Horas antes de anunciar os convocados da seleção brasileira para a Copa do Mundo, nesta segunda-feira, na sede da CBF, no Rio, o técnico Tite teve um longo depoimento, concedido ao site The Players Tribune, utilizado para personalidades do esporte mundial contarem suas histórias, divulgado nesta segunda-feira. No texto em primeira pessoa, o treinador lembrou da longa trajetória que trilhou antes de assumir o comando do time nacional, enfatizando como a Copa de 1970 lhe serviu como inspiração para que viesse a aceitar o desafio de assumir a seleção em um momento difícil das Eliminatórias do Mundial de 2018, logo após a demissão do técnico Dunga, em 2016.
“Eu quero contar para vocês a história de um aparelho de rádio. Daqui a algumas horas, vou selecionar 23 jogadores para representar o Brasil na Copa do Mundo. Para mim, é uma honra e também uma grande responsabilidade, porque eu sei o quanto isso significa para os jogadores e para o País. Mas agora, antes de fazer as minhas escolhas, eu quero explicar o que esse trabalho significa para mim. Para tanto, eu preciso começar com a história do aparelho de rádio. Porque quando eu era criança, o rádio não era apenas uma caixa preta. Para mim, era mágica”, afirmou Tite ao iniciar o depoimento.
O comandante lembrou que, na sua infância humilde na qual foi sustentado por pais batalhadores, não tinha uma TV em casa para acompanhar a Copa de 1970, realizada no México, onde a seleção de Pelé conquistou o tricampeonato mundial. Por isso, ele destacou como o rádio serviu para povoar a sua imaginação e os seus sonhos de menino, quando nem passava pela sua cabeça a ideia de um dia de se tornar técnico de futebol.
“Eu me lembro que durante a Copa do Mundo de 1970, o país inteiro se concentrava para focar nos jogos. Eu tinha 9 anos de idade, e a gente sentava na frente do rádio pra ouvir a magia do futebol. Era como se os jogos fossem uma história dramática sendo contada pra gente. É uma espécie de arte, na minha opinião É como um quadro ou um grande romance. O Brasil estava no ataque, e o narrador pintava uma imagem em nossas mentes. Eu não quero dizer com isso que o futebol transmitido pela TV seja ruim Mas é uma experiência muito diferente. Tem menos mistério, talvez. Menos imaginação. Com o rádio, a gente se segura em cada palavra”, destacou Tite, para em seguida detalhar momentos marcantes para ele naquele Mundial.
“Eu me lembro de ouvir a semifinal contra o Uruguai muito vividamente. É parte da minha memória emocional, porque o Brasil estava perdendo o jogo na maior parte do primeiro tempo. Então eu sentei na frente do rádio, criando o gol da vitória na minha mente mais de uma vez. É claro, antes do final do primeiro tempo, a gente ouviu a emoção na voz do narrador aumentar, e a gente sabia que alguma coisa estava acontecendo: “Tostão … Clodoaldo …. Clodoaldoooooooooooooooo!!!!!!”, completou o comandante, se referindo ao gol do empate da seleção, marcando então pelo volante da equipe comandada por Zagallo em um tempo no qual era muito raro um jogador desta posição ir ao ataque para ser decisivo em uma jogada ofensiva.
“E foi um momento tão inacreditável para mim, porque claro nós estávamos absorvidos com alegria, mas eu estava descrente. Eu não conseguia pintar o quadro. Porque do jeito que o narrador descreveu, o Tostão deu o passe e então o Clodoaldo veio e marcou o gol. Perguntei a mim mesmo: ‘Como foi possível o Clodoaldo fazer o gol?’ Porque ele era um volante de marcação. E eu perguntei a mim mesmo novamente: ‘Como o Tostão saiu da área para dar o passe? Ele é atacante! Como é que isso pode funcionar?'”, disse.
DE JOGADOR A TÉCNICO APÓS 7 CIRURGIAS – Ao falar sobre o Mundial disputado há 48 anos, Tite também lembrou que o seu grande objetivo era um dia poder defender o Brasil como um jogador, mas os próprios problemas físicos tornaram esta meta ainda mais difícil do que seria pela própria concorrência e o grande número de craques que havia como opções para atuar pela seleção em seus tempos de atleta profissional.
“Para falar a verdade, eu nunca pensei em me tornar treinador. Como todos os outros garotos que foram marcados pela Copa do Mundo de 1970, eu sonhava em vestir a camisa amarela da seleção brasileira. Infelizmente, esse não foi o meu destino. Tive de passar por sete cirurgias no meu joelho. Aos 27, minha carreira estava encerrada, e eu ainda era um cara jovem. Um cara jovem que ainda vivia para o futebol. Então, eu segui o caminho de me tornar técnico de futebol”, recordou o comandante, que depois enfatizou: “É difícil acreditar que eu tenho feito esse trabalho por quase 30 anos. A história de um treinador, assim como a história de um jogador, é imprevisível”.
DOS EMIRADOS À SELEÇÃO EM OITO ANOS – Ao falar sobre os destinos que a vida o reservou, Tite também lembrou que há menos de uma década estava trabalhando no futebol árabe, distante dos holofotes, mas com uma vida tranquila ao lado de sua família, quando recebeu uma ligação que mudaria o seu destino e que o colocaria em uma rota que o levaria anos mais tarde à seleção brasileira, que ele assumiu em meados de 2016.
“Oito anos atrás, eu estava sentado em meu apartamento em Abu Dhabi, como treinador do Al Wahda FC, quando recebi o telefonema que mudou a minha vida. Andrés Sanchez me ligou para saber se eu queria voltar para o Brasil e ser o treinador do Corinthians. Eu disse a ele que não estava certo a respeito disso”, revelou Tite, que depois acabou se convencendo de que precisava trocar a calmaria pela chance de voltar a dirigir um grande clube do Brasil e então ter a oportunidade de comandar jogadores como Ronaldo e Roberto Carlos, que vestiram a camisa corintiana naquele período.
“Minha esposa, Rose, amava nossa vida em Abu Dhabi. Minha filha já tinha feito exames para começar a frequentar a escola por lá. Nós tínhamos uma vida linda sem muita pressão. Na verdade, era perfeito. Então, claro, eu disse para a minha esposa: ‘Bem…’
E ela respondeu: ‘Ah, você não me engana. Eu sei que você quer voltar’. Ela sabia o que estava no meu coração. Eu peguei o avião para São Paulo poucos dias depois. Eu me lembro que nesse voo de volta para o Brasil disse a mim mesmo: ‘Cara, tu vai treinar Ronaldo e Roberto Carlos, duas lendas. É uma honra incrível’.
Tite, porém, se viu muito próximo de ser demitido pelo Corinthians após a dura eliminação diante do Tolima, na Copa Libertadores de 2010, quando acabou tendo a sua permanência bancada por Andrés Sanchez e depois deu início a uma grande reviravolta que culminaria no título brasileiro de 2011, na inédita conquista da Libertadores de 2012 e ainda do Mundial de Clubes daquele ano.
“Os primeiros meses foram uma experiência formidável. Mas então nós tínhamos um jogo simples de classificação para a fase de grupos da Libertadores contra o Tolima na Colômbia… e acabou não sendo tão simples. Nós perdemos o jogo e fracassamos na classificação para o torneio, o que é simplesmente inaceitável num clube como o Corinthians. E eu me lembro de olhar para os refletores depois do apito final e pensar: ‘É isso, estou acabado’.
“Quando nós voltamos para São Paulo, algumas pessoas tinham invadido o centro de treinamento e apedrejando os carros, e eles estavam ameaçando os jogadores. Foi um momento assustador porque eles não eram torcedores. Eram vagabundos e criminosos que não entendiam a natureza humana do futebol. Nós entramos no centro de treinamento, e houve um momento que eu nunca vou me esquecer. Um dos nossos goleiros, Raphael, levantou e falou para o grupo. Ele disse: ‘Nós não somos ladrões. Nós somos seres humanos. Nós trabalhamos duro. Nós temos família. Eles não podem fazer isso conosco’. E ele começou a chorar na frente do time inteiro. Foi um momento incrível, porque ele estava tão vulnerável, e a emoção foi muito vívida. O que aconteceu naquele dia estava mexendo com a personalidade, com a educação e com os princípios dele”, disse Tite.
Em seguida, o comandante admite que precisou superar a sua própria desconfiança em relação ao futuro para depois vir a se tornar um grande ídolo da torcida corintiana e o principal técnico em atividade trabalhando no Brasil. “Eu me levantei e disse: ‘Não se preocupe, Raphael, nós superaremos isso’. Na verdade, eu não estava tão certo assim. Eu me lembro de voltar para casa com o vidro de trás quebrado, pensando comigo mesmo: ‘Será que eu vou ter emprego amanhã?’ É talvez um milagre que o Corinthians tenha me mantido sob tanta pressão. Um ano depois, minha esposa e eu estávamos sentados na cozinha em São Paulo tomando uma taça de vinho. Eram 4h da manhã, e nós tínhamos acabado de chegar em casa depois da conquista do troféu da Libertadores. Eu não sei por que, mas eu perguntei a ela: ‘Nós merecemos isso?'”
“E ela recontou tudo o que nós tínhamos passado – não apenas o ataque ao centro de treinamento depois do desastre contra o Tolima, mas também todos os sacrifícios que ela e as crianças fizeram ao longo dos anos. E neste exato momento nós ouvimos um barulho lá fora. Nós fomos até a janela, e alguns corintianos estavam do lado de fora, gritando meu nome. Foi surreal. Eu pensava comigo mesmo: ‘Cara, muito pode mudar em apenas um ano’, reforçou o comandante ao recordar aquele episódio.
“Naquela noite, eu segurei o troféu em minhas mãos, eu chorei muito. Algumas pessoas podem imaginar como o futebol pode levar um homem às lágrimas. Eu posso dizer que o motivo não é apenas sobre o jogo em si. A razão é muito mais profunda do que isso. Tem a ver com a sua família”, disse Tite.
ESCOLHAS DIFÍCEIS – Ao traçar um paralelo do seu passado recente no Corinthians com o momento que vive hoje na seleção brasileira, o comandante também enfatizou que nunca é fácil tomar decisões, como por exemplo as que fará definir os 23 convocados para a Copa do Mundo de 2018.
“Agora que nós estamos a um mês do torneio, eu vou precisar tomar algumas decisões difíceis. Eu sei que não vou conseguir convocar todos os jogadores que estão fazendo por merecer. Por exemplo, nós temos três laterais-esquerdos que mereceriam estar no avião para a Rússia, mas nós temos apenas duas vagas. Nós temos de escolher os jogadores que vão nos proporcionar as melhores chances de vencer, independentemente de quem é mais merecedor. Para ficar ainda mais claro o que quero dizer, em 2012, Jorge Henrique não merecia jogar a final do Mundial de Clubes da Fifa pelo Corinthians contra o Chelsea. Douglas e Romarinho estavam jogando mais naquele momento. Mas o time precisava de um jogador com as características do Jorge Henrique para vencer aquele jogo em particular, então eu tive de tomar essa decisão difícil”, relembrou.
DA DECEPÇÃO EM 2014 À SELEÇÃO EM 2016 – Quando vivia grande momento como técnico do Corinthians, em 2014, Tite admite que esperava ter sido chamado para assumir o comandado da seleção brasileira após o fracasso do time nacional na Copa do Mundo daquele ano. Entretanto, de forma surpreendente, a CBF optou por resgatar Dunga ao comando da equipe nacional para substituir Felipão.
“Quando não fui chamado para ser o treinador da seleção brasileira em 2014, aquilo quebrou meu coração. Mas, na verdade, talvez tenha sido a melhor coisa que aconteceu, porque me deu a oportunidade de voltar a estudar e continuar a aprender. Fiquei frustrado, irritado, muito triste. No entanto, naquele momento, eu pensei na minha mãe. Ela era uma lutadora”, disse Tite, que em seu depoimento destacou que sua mãe trabalhava até de madrugada para poder dar uma melhor condição a ele na infância.
“Em junho de 2016, fui chamado para uma reunião na CBF. Quando eles me ofereceram o posto de técnico da seleção brasileira, foi uma emoção indescritível. Mas então a nossa posição na tabela de classificação para a Copa do Mundo se impôs, e eu sabia que se nós perdêssemos o jogo contra o Equador (pelas Eliminatórias) haveria uma crise. Para ser sincero, eu viajei na máquina do tempo, e eu tinha lembranças do que aconteceu quando nós fracassamos para classificar na Libertadores, e eu pensei: ‘Cara, imagina o que vai acontecer se o Brasil não se classificar para a Copa do Mundo. Qual vai ser teu legado?”, afirmou o treinador, que depois se convenceu de que tinha de topar o grande desafio após colocar em dúvida se deveria aceitar a proposta.
“Na manhã seguinte, eu acordei e pensei realmente no seguinte, “Eu não vou aceitar o convite. Não é o momento certo. Mas então eu tive um tempo para refletir, e eu pensei no meu pai e na minha mãe. Pensei na imagem da minha mãe na máquina de costura às 3h da manhã. Pensei no quanto eu costumava sentar à frente do rádio, ouvindo a seleção brasileira. Então, eu disse pra mim mesmo: ‘Ok, você lutou por isso. Agora você tem a chance de fazer teus sonhos se tornarem realidade’. Então eu aceitei o convite com grande honra e responsabilidade”, reforçou Tite.
‘QUERIA QUE MEU PAI ESTIVESSE AQUI’ – No fim do seu depoimento, Tite ainda lamentou o fato de o seu pai não estar mais vivo para vê-lo comandando o Brasil na Rússia. “Depois que meu pai faleceu, minha mãe me contou algo que ele disse quando eu comecei a treinar. Ele nunca me disse essas palavras, porque não era o jeito dele de conversar com os filhos. Mas um dia ele disse pra minha mãe: ‘O Ade (de Adenor Bachi) vai ser um dos grandes’. Isso representou para mim mais do que qualquer outro troféu que eu tenha conquistado. Eu queria que ele estivesse aqui para ver o filho dele na Copa do Mundo”, disse.
“Só Deus sabe o que vai acontecer na Copa do Mundo da Rússia, mas eu espero que o país inteiro esteja unido para nos apoiar. Eu sei que a televisão mudou muita coisa pra esta geração, mas eu gostaria de acreditar que quando nós marcarmos um gol, haverá milhões de crianças brasileiras que estarão em frente ao rádio, imaginando o gol da vitória em suas mentes seguidas vezes. Funcionou para mim em 1970. Era como mágica”, finalizou.