Quase cinco décadas após o surgimento do Tropicalismo, seu espírito revolucionário ainda sobrevive na música, na forma de ‘surpresas que revelam a força da música popular brasileira e o imenso potencial do Brasil’. A avaliação vem de nada menos do que Caetano Veloso, um dos cabeças do movimento dos anos 60.
São quase nove horas da noite. Ainda sem tomar café da manhã, Caetano, de 73 anos, ele não titubeia ao ser questionado sobre o que seria hoje uma Tropicália ainda inexplorada. “O funk carioca, o sertanejo universitário e os restos da axé music”, ele diz.
“Ontem fui ver um show da (funkeira) Anitta. Ela é muito boa, muito afinada”, disse. “O funk no Brasil hoje é uma coisa totalmente brasileira. E as letras, que às vezes são muito obscenas, ou ligadas ao narcotráfico e à bandidagem, ficaram cada vez mais criativas. Os efeitos sonoros também”, acrescentou.
Os comentários de Caetano Veloso foram feitos em dezembro, durante uma entrevista à BBC para o documentário Tropicália – Revolution in Sound, que teve também a participação de Gilberto Gil e do pop star americano David Byrne.
Partes da entrevista, feita em inglês e em português, são agora publicadas após a transmissão do programa, que foi ao ar pela BBC Radio 4 e pelo Serviço Mundial da BBC, e aproveitando a volta de Caetano a Londres para reapresentar nesta quarta-feira, com Gilberto Gil, o show da turnê “Dois Amigos, Um Século de Música”, que a dupla já havia trazido à capital britânica no ano passado.
Nova Tropicália
No final da década de 1960, Caetano Veloso e Gilberto Gil lideraram o movimento Tropicalista – também conhecido como Tropicália – na música brasileira. A ideia era fundir influências estrangeiras (como o rock, por exemplo) à música brasileira em busca de algo novo.
“Queríamos usar tudo o que tínhamos aprendido, de onde quer que tivesse vindo. Porque essas coisas eram nossas, faziam parte da nossa vida desde a nossa infância. Nós queríamos um outro tipo de nacionalismo. Queríamos ter a coragem suficiente de afirmar quem nós realmente éramos. Por isso, antes mesmo de ir para a Inglaterra, escrevi letras em inglês – inglês ruim.”
Presos pela ditadura militar em 1969, os dois receberam ordens de deixar o país. Seguiram para Londres e, quando retornaram ao Brasil, em 1971, o movimento tinha terminado. Mas para Caetano, deixou marcas sentidas até hoje.
“Ela teve consequências e são irreversíveis. Mas recentemente, tenho sentido uma coisa muito forte quando toco (a canção) Tropicália nesses shows que estou fazendo com o Gil. É como se a música falasse sobre o que está acontecendo, sobre o Brasil como ele realmente é. É uma experiência nova, que transformou essa turnê que estou fazendo com o Gil em algo muito maior.”
Entre os paralelos do Brasil de hoje com o da década de 1960, há a polarização de opiniões e a instabilidade política. No entanto, a música parece já não despertar as mesmas paixões – ou mesmo brigas – como fazia na época dos festivais, onde os tropicalistas despontaram com suas guitarras elétricas. A música deixou de ser importante?
“A música como parte da indústria do entretenimento se transformou. O contexto mudou, com a internet e as novas formas de se produzir e consumir música. É outra coisa, é uma nova era”, disse Caetano. “Mas vejo muita música sendo feita no Brasil e acho que ela ainda é algo muito forte aqui.”
Tomando como exemplo o funk carioca, o compositor descreve a forma como o morro se apropriou de um estilo estrangeiro. Qualquer semelhança com o ideário tropicalista não é pura coincidência…
“Eles começaram importando o Miami Bass para as festas. Depois, começaram a compor suas próprias músicas. E colocaram uma batida que vem da umbanda e do maculelê. Então funk no Brasil hoje é uma coisa totalmente brasileira.”
“Essas surpresas acontecem, como aconteceu com o carnaval na Bahia. E como está acontecendo hoje com o sertanejo universitário. É uma música vulgar e sentimental e você acha que é bobagem. Mas eles são tão afinados. E o próprio fato de que a música do Centro-Oeste hoje está presente na região costeira do país, isso é um fato cultural que revela muito sobre o que o Brasil se tornou. Ou pode se tornar.”
Missão do Brasil
Caetano Veloso defende há muito tempo a visão de que o país – miscigenado, pobre, falando português e habitando um imenso país no hemisfério sul, às margens do chamado “mundo civilizado” – poderia ser capaz de absorver noções universais de civilização e mesclá-las com sua própria essência cultural e espontaneidade para criar um modelo alternativo de civilização para o mundo.
E apesar da crise atual, ele não perde de vista o destino que vislumbra para o país.
“É o que realmente penso. Acho que temos uma oportunidade que a história nos deu, que o destino nos deu. E temos de ser capazes de realizar esse potencial. Essa é a ideia central, que dá base à Tropicália. É uma situação estranha, única, cheia de desvantagens, e temos a obrigação de transformar essas desvantagens em oportunidades”, disse à BBC.
“E não estou falando apenas da alegria. Estou falando também do sofrimento, de tudo. A nossa experiência poderia ser útil para nós e para o mundo. E nós poderíamos transformar essa nossa estranha história em algo que poderia ser interessante para todos.”
Olhando para o presente, no entanto, Caetano expressou tristeza e preocupação com a situação política e econômica do país – que já era difícil em dezembro último.
“A recessão, essa discussão sobre o impeachment… uma coisa agrava a outra, é um ciclo vicioso. O presidente da Câmara (Eduardo Cunha) é claramente um homem desonesto. E o governo não tem força. A confusão é tão grande que, nesse momento, não temos ideia do que vai acontecer.”
O assessor de comunicação de Caetano disse à BBC Brasil que o artista não quer fazer mais declarações sobre o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Mas durante um show em Salvador no dia 2 de abril, o cantor repetiu o coro da plateia, que gritava “não vai ter golpe”. E em participação no programa Altas Horas, da TV Globo, em março, ele comparou manifestações pró-impeachment a atos de apoio ao golpe militar de 1964.
Prisão e exílio
Para o documentário Tropicália – Revolution in Sound, Caetano falou das memórias sobre a difícil experiência, em 1969, de ser preso (com o amigo Gilberto Gil) – sem explicação.
“Fomos levados a um quartel (no Rio de Janeiro) e ficamos presos (na primeira semana) em regime solitário. Fiquei um pouco louco. (…) Comecei a achar que a vida era apenas aquilo. Que tudo o que eu lembrava existia apenas na minha cabeça. Algumas pessoas são colocadas na prisão e não ficam tão perturbadas mentalmente. Acho que sou muito narcisista para aguentar uma situação como essa.”
Ele disse que teve medo de ser morto.
“Numa ocasião, achei que iam me matar, sim. Eles tinham nos levado para outro quartel, no norte do Rio. Lá eu não estava sozinho, estava com outros presos. Um dia, um soldado jovem que cuidava da porta começou a olhar para mim com uma expressão estranha. Ele devia ter uns 18, 19 anos. Ele olhava para mim e notei que estava chorando”, contou.
“Eu ia perguntar o que estava acontecendo, mas não tínhamos permissão de falar com eles. Então, chegaram três oficiais e disseram para eu ir com eles. Estavam armados. Eu fui. Saímos do prédio e seguimos por umas ruelas, no meio de umas casinhas. Eu andava e eles seguiam atrás de mim. Num dado momento, disseram: ‘Pare. Não olhe para trás’. Eu parei e pensei, ‘Vou morrer’. É difícil explicar o que você sente.”
O efeito não foi acidental, explicou. “Eles sabiam o que estavam fazendo. Então disseram: ‘Vire à direita e suba as escadas’. Senti um certo alívio, mas ainda não tinha entendido. Quando subi as escadas, pela porta, vi o que era: uma barbearia! Então, cortaram meu cabelo (estilo) ‘Jimmi Hendrix Experience’. (Risos) Fiquei tão feliz!”
Depois de algumas semanas, Caetano e Gil foram informados sobre as razões da prisão: uma denúncia, falsa, de que uma bandeira brasileira teria sido rasgada durante um show da dupla. Seis meses após ter sido presos, Caetano e Gil seguiram para Londres.
“Nosso empresário achou que Londres era a melhor cidade para ficarmos – um lugar tranquilo, não tinha gente brigando nas ruas. (…) Londres tinha música boa – ou pelo menos música interessante. Mas eu achei um lugar triste e muito diferente. A Inglaterra às vezes parece um outro planeta, ainda mais naquela época. Mas tem seu charme. Depois de um ano em Londres, comecei a gostar da cidade.”
A cidade ainda traz um pouco da tristeza que sentiu no exílio, explicou. Mas às vezes traz também coisas boas.
“Quando estou lá, lembro das coisas boas. E alguns dos costumes ingleses são muito importantes, por causa da longa tradição de liberalismo (do país). Gosto disso e aprendi muito. Mas só gosto de morar no Brasil.”
O compositor toca anualmente na capital britânica, sempre para casas lotadas. Vai ser assim no show Dois Amigos, no Barbican Hall. Foi assim no ano passado, no Eventim Apollo. E também em 2014, quando levou ao Barbican o show Abraçaço e tocou canções do álbum Cê, disco de rock ganhador de um Grammy Latino.
Bom gosto
Fãs da Tropicália talvez tenham reconhecido, naquele show em particular, o espírito provocador do movimento. Na ousadia de trazer rock dos trópicos para a terra do rock. No gestual invocado, petulante. E nas letras de canções como Homem (do disco Cê), por exemplo:
“Não tenho inveja da maternidade, nem da lactaçãoNão tenho inveja da adiposidade, nem da menstruaçãoSó tenho inveja da longevidade e dos orgasmos múltiplos”)
Falando sobre Tropicalismo à BBC em 2013, o escritor e jornalista Ruy Castro disse que os tropicalistas “queriam acabar com a aura de bom gosto que prevalecia no Brasil naquela época (os final dos anos 60)”.
Mas o que tem de errado com o bom gosto?
“Não tem nada de errado com o bom gosto em si”, explicou Caetano. “Mas quando ele é usado para impedir o avanço das coisas, o bom gosto pode ser perigoso. Você elege o que é bom gosto e interrompe a marcha das coisas.”
“Mas tenho de dizer que, quando escrevi (a canção) Homem, não estava pensando em provocar ou surpreender. Estava expressando o que realmente penso a respeito dessas coisas. Claro que tinha consciência de que algumas pessoas poderiam achar aquilo um pouco… forte.”
“Homem também faz um diálogo com as canções da Rita Lee que falam sobre ser mulher. Tem uma que fala sobre menstruação, algo que eu não invejo”, diz o cantor aos risos.
A guerra contra a “opressão” do bom gosto e o diálogo com Rita Lee já duram quase cinco décadas. Este teve início em 68, quando Os Mutantes – banda integrada por Rita – gravaram com Caetano, Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão e Tom Zé o disco Tropicália ou Panis et Circencis, que lançou o movimento Tropicalista, em 1968.
“Era estimulante” ele lembra. “Estávamos sempre experimentando. Aqueles meninos, Arnaldo (Batista), Sérgio (Dias) e Rita, eram incríveis. Eles são incríveis.”
“Eles apareceram e, para mim, foi mesmo chocante. Porque eles eram muito garotos! O Serginho (Dias) tinha o quê, 16 anos? Fiquei impressionado com o nível de proficiência. Dava esperança. E dá, né? Você sente que São Paulo pode. E que São Paulo ter reunido essa energia capitalista dá muita força ao possível projeto Brasil.”