Gigantes da indústria farmacêutica e laboratórios de universidades têm se esforçado para encontrar uma substância que estimule o organismo a produzir anticorpos contra o Sars-CoV-2. O resultado é que, se no início de abril havia cerca de 30 projetos de desenvolvimento de vacinas, hoje, de acordo com a OMS, são 102. Desses, sete estudos se encontram na fase clínica, quando os testes são feitos em seres humanos.
Apesar da rapidez da resposta da comunidade científica e da promessa do presidente dos EUA, Donald Trump, de que uma vacina estará pronta até o fim do ano (leia entrevista nesta página), dificilmente ela estará disponível antes de 2021.
Algumas das que estão em testes clínicos, inclusive, preveem resultados definitivos para além disso. É o caso da substância que uniu três laboratórios, BioNTech, Fosun Pharma e Pfizer. A vacina começou a ser testada em humanos na Alemanha e nos Estados Unidos. Mas a expectativa é de que o estudo completo só seja divulgado em 2023 — o que é um prazo apertado, considerando que muitas substâncias do tipo demoram até uma década para chegar ao mercado.
Etapas
Para ser aprovada, uma vacina, ou um medicamento, precisa passar por fases rigorosas. Primeiro, os testes in vitro, quando são investigados os efeitos em células cultivadas no laboratório. Depois, os estudos com animais. Seguem as pesquisas com humanos, divididas em três etapas. A primeira verifica a segurança. A segunda inclui um número maior de participantes, na casa das centenas, e, além da toxicidade, começa a testar a eficácia. Depois, o estudo tem de ser realizado com milhares de pessoas e, seguindo o padrão ouro dos ensaios clínicos, ser randomizado, ou seja, dividindo-se aleatoriamente os voluntários em vários grupos, sendo que parte deles receberá placebo, para fins de comparação.
Dependendo das agências regulatórias, porém, é possível queimar etapas. Por isso, antes mesmo que um estudo seja concluído, uma vacina poderá ser lançada. A substância que vem sendo desenvolvida pela empresa de biotecnologia Moderna, em parceria com o Instituto Nacional de Doenças Alérgicas e Infecciosas dos Estados Unidos (Niaid), por exemplo, é uma candidata a chegar ao mercado antes da publicação do resultado final dos estudos.
A vacina, que usa a tecnologia de RNA mensageiro, começou a ser rascunhada dois dias depois de cientistas chineses anunciarem, em janeiro, a sequência genética do coronavírus. Quarenta e dois dias depois, a Moderna, baseada em Massachusetts, recebeu o aval para os testes de nível 1.
Há cinco dias, a companhia divulgou que a Food and Drug Administration (FDA) está agilizando a regulamentação por meio do fast track, um processo que permite facilitar o desenvolvimento de uma droga “para tratar condições sérias e que preencham uma necessidade médica não atendida”. Com US$ 500 milhões de financiamento federal, a Moderna pretende iniciar a fase 2 do estudo no início do verão norte-americano, na terceira semana de junho.
Proteína spike
Independentemente da tecnologia usada, a maioria das vacinas em desenvolvimento visa a proteína spike, uma estrutura em formato de espinho, que fica no envelope que protege o Sars-CoV-2. Uma das principais descobertas da ciência foi de que é graças a ela que o vírus consegue se ligar à membrana da célula do hospedeiro. Também é a spike que facilita o processo pelo qual o micro-organismo, depois de entrar no citoplasma, utiliza o maquinário celular para se reproduzir.
Uma preocupação era a de que o organismo não reconhecesse esse alvo como um perigo em potencial, deflagrando a resposta imunológica. Porém, um estudo publicado na semana passada na revista Cell confirmou que as células T, um dos principais mecanismos de defesa, identificam a proteína como a principal vilã do Sars-CoV-2.
Os pesquisadores do Centro de Doenças Infecciosas e de Pesquisa de Vacinas La Jolla, na Califórnia, estudaram detalhadamente a resposta antiviral do organismo ao ter contato com o Sars-CoV-2. Para isso, usaram amostras de 20 adultos recuperados da covid-19. Os resultados mostraram que o sistema imunológico é capaz de reconhecer o vírus de várias maneiras, dissipando o temor de que os esforços para desenvolver a vacina fossem em vão. “Se tivéssemos visto apenas respostas imunes marginais, estaríamos preocupados”, diz Alessandro Sette, professor do centro. “Mas o que vemos é uma resposta muito robusta das células T contra a proteína spike, que é o alvo da maior parte das pesquisas atuais, assim como contra outras proteínas virais. Essa descoberta é realmente uma boa notícia para o desenvolvimento de vacinas”, conta.
Ainda assim, os desafios para o desenvolvimento de uma vacina eficaz não são poucos, diz Lawrence Corey, pesquisador do Departamento de Medicina da Universidade de Washington, em Seattle. No início da semana passada, Corey publicou um artigo na revista Science, ao lado de outros especialistas, incluindo Antony Fauci, diretor do Niaid, ressaltando que, apesar dos avanços, ninguém está pronto, agora, para colocar uma vacina no mercado.
“Um alto grau de segurança é o objetivo principal de qualquer vacina amplamente utilizada e há, teoricamente, o risco de que a vacinação possa tornar uma infecção subesequente por Sars-CoV-2 ainda mais severa”, alerta o especialista. De acordo com ele, isso já foi verificado em coronavírus que atacam felinos, e também em modelos animais nos quais foram testadas vacinas contra a Sars, epidemia que eclodiu entre 2002 e 2003. A pressa para o desenvolvimento da substância não pode ser maior do que os cuidados com a segurança da população, adverte.
Mutações
Outra preocupação é com as mutações. O genoma do coronavírus consiste em uma fita simples de RNA, com uma taxa de mutação relativamente alta. “Mutações na proteína spike podem colocar em risco intervenções imunológicas para o Sars-CoV-2”, avisa a infectologista Helena Brígido, professora da Universidade Federal do Pará. Até agora, não foram observadas variações muito importantes no novo coronavírus, mas um estudo divulgado há duas semanas detectou alterações justamente na proteína spike, embora os autores tenham ressaltado que ainda não se sabe se elas impactarão no desenvolvimento das vacinas.
Além dos desafios no desenvolvimento e no teste de segurança e eficácia, especialistas lembram que é preciso centrar esforços na produção das vacinas, para que sejam disponíveis globalmente. “A capacidade de fabricar centenas de milhões a bilhões de doses de vacina requer que elas sejam produzidas em todo o mundo”, diz o artigo assinado por Corey e Fauci na revista Science.“Embora novas tecnologias e fábricas possam ser desenvolvidas para sustentar a produção, existe uma necessidade imediata de financiar a biomanufatura necessária, desde a fabricação da vacina à do frasco e à distribuição das doses”, afirma, ressaltando que, para isso, é necessário um “esforço global”.