A Organização das Nações Unidas (ONU) realiza um extenso debate para definir quais serão as novas metas que substituirão os Objetivos do Milênio – e o Brasil está no centro de uma das principais controvérsias desse processo.
Os oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) foram firmados em 2000 com a finalidade principal de reduzir a pobreza mundial. Eles vão desde a eliminação da fome à universalização da educação primária, e se desdobram em metas concretas, como reduzir em dois terços a mortalidade de crianças menores de cinco anos.
O prazo para o cumprimento das metas é 2015 e, por isso, os países já vêm debatendo quais serão os novos objetivos que irão substituí-los.
17 propostas que ainda estão em negociação:
1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas em todos os lugares.
2. Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e nutrição adequada para todos, e promover a agricultura sustentável.
3. Alcançar saúde para todos em todas as idades.
4. Fornecer educação equitativa, inclusiva e de qualidade e oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos.
5. Atingir a igualdade de gênero e a autonomia para mulheres e meninas em todos os lugares.
6. Garantir água limpa e saneamento para todos.
7. Garantir serviços de energia modernos, confiáveis, sustentáveis e a preços acessíveis para todos.
8. Promover o crescimento econômico forte, sustentável e inclusivo e trabalho digno para todos.
9. Promover a industrialização sustentável.
10. Reduzir as desigualdades dentro dos países e entre eles.
11. Construir cidades e assentamentos humanos inclusivos, seguros e sustentáveis.
12. Promover padrões de produção e consumo sustentáveis.
13. Promover ações em todos os níveis para combater as mudanças climáticas.
14. Alcançar a conservação e o uso sustentável dos recursos marinhos.
15. Proteger e restaurar os ecossistemas terrestres e interromper toda a perda de biodiversidade.
16. Alcançar sociedades pacíficas e inclusivas, o Estado de direito, e instituições eficazes e capazes.
17. Fortalecer e melhorar os meios de implementação [desses objetivos] e a parceria global para o desenvolvimento sustentável.
Dentro desse processo, o Brasil lidera a oposição a um objetivo relacionado à governança, justiça e paz – e conta com o apoio de boa parte dos países em desenvolvimento. Recentemente, a Rússia também se manifestou duramente contra.
Do outro lado, defendendo a inclusão deste objetivo, há um bloco formado, principalmente, por países ricos como as nações da Europa Ocidental, Estados Unidos, Japão e Austrália.
Um oficial da ONU que acompanha de perto o debate disse à BBC Brasil que essa está sendo a discussão mais difícil dentro das negociações para estabelecer os chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Argumentos brasileiros:
No início deste mês, chegou-se a um esboço inicial em que foram estabelecidos 17 objetivos, mas a intenção é diminuir esse número, para facilitar a divulgação.
Os temas de governança, justiça e paz compõem, por hora, o 16º. Ele inclui metas como a redução dos homicídios e do tráfico de armas; garantia de acesso à justiça e liberdade de expressão; e ampliação da transparência governamental.
Em nota enviada para a reportagem, o Itamaraty explicou que a adoção de “objetivos independentes sobre governança poderia tirar o foco dos esforços centrais que os ODS devem promover – em particular, a erradicação da pobreza”.
Outro argumento reiterado pelo país é que houve um acordo dentro da ONU de que a base para a definição dos novos objetivos seria o documento final da Rio+20, conferência realizada em 2012 no Rio de Janeiro.
O texto foi aprovado por consenso pelos 190 países presentes, resultado atribuído à liderança do diplomata brasileiro Luiz Alberto Figueiredo, atual Ministro das Relações Exteriores.
A relevância desse documento acaba valorizando o papel do Brasil nas atuais negociações. A importância da boa governança e da paz para o desenvolvimento sustentável é citada no texto, mas isso não é previsto como um objetivo específico.
“O Brasil e os países em desenvolvimento, em particular, têm defendido que os ODS devem ser voltados aos grandes desafios para o desenvolvimento sustentável, nos campos econômico, social e ambiental. Isso significa que se deveria dar prioridade aos temas já acordados em 2012 na Rio+20”, acrescenta a nota do Itamaraty enviada à BBC Brasil.
Reação:
Diversas organizações da sociedade civil têm se mobilizado em reação à posição do Brasil. Elas contestam que essa seja uma “agenda” dos países ricos e lembram que mesmo em nações como Estados Unidos e Reino Unido há problemas, como o acesso limitado dos mais pobres à justiça.
Países pobres marcados por intensos conflitos também têm defendido a importância desses temas. Em um documento conjunto, os 54 países africanos defenderam que paz e segurança deve ser um dos seis pilares das negociações, mas não está claro se o continente ficaria contra a posição do Brasil caso ela predomine entre as nações em desenvolvimento.
A Article 19, organização baseada em Londres que promove a liberdade de expressão e a transparência governamental, está liderando uma campanha internacional para defender que os temas de governança sejam confirmados como ODS.
Já a Open Society Foundations, do filantropo multimilionário George Soros, convidou o ministro do Supremo Tribunal Federal, Roberto Barroso, para um debate sobre o assunto dentro da ONU. Na ocasião, Barroso afirmou que é “difícil conceber a ideia de desenvolvimento sustentável, em qualquer de suas três dimensões – econômico, social e ambiental –, sem incorporar a justiça como um elemento essencial”.
Para Betsy Apple, da Open Society Foundations, o Brasil está defendendo uma visão limitada do que é desenvolvimento. A avaliação é a mesma do Instituto Igarapé, organização brasileira que trabalha para integrar as agendas de segurança e desenvolvimento. “Uma coisa não existe sem a outra. É uma visão estreita separá-las”, afirma Eduarda Hamann, uma das coordenadoras do instituto.
A BBC Brasil apurou, porém que existe dentro da ONU certa compreensão em relação ao posicionamento do Brasil de que assuntos de segurança poderiam ser uma “distração”, devido a sua complexidade. O país argumenta que não seria possível falar de paz sem discutir, por exemplo, o conflito Israel-Palestina ou a política externa americana.
Políticas e receio:
O Brasil não nega a importância da paz e da governança para o desenvolvimento sustentável e tem proposto que algumas metas relacionadas e essas questões sejam incluídas dentro de outros objetivos, como os que tratam de redução da desigualdade e promoção da educação.
Os críticos dessa proposta dizem que diluir as questões de governança, justiça e paz em outros objetivos não daria a devida visibilidade aos temas.
Historicamente, o Brasil muitas vezes defendeu que as duas coisas – segurança e desenvolvimento – são inseparáveis. Para Hamann, a posição da delegação brasileira na ONU hoje parece reflexo da circunstância política atual.
Por um lado, o país quer fortalecer o documento da Rio + 20, que é considerado “um filho” do Brasil. Por outro lado, quer valorizar mais os tópicos em que tem mais poder de influência – o que aumenta seu papel de liderança nos processos de implementação dos ODS. “O país é uma referência na questão social e ambiental, mas não na questão de segurança”, destaca Hamann.
Haveria ainda um receio do Brasil de que a adoção de um ODS específico para questões relacionadas à paz daria um papel central ao Conselho de Segurança da ONU dentro do processo de implementação dos objetivos – e este órgão, que reúne as grandes potências militares, não é considerado democrático por muitos por não refletir a geopolítica atual em sua representação.
Outro preocupação explicitada pelo país nas negociações é que ações internacionais de redução à pobreza fiquem condicionadas a questões de segurança. Na avaliação do Instituto Igarapé, a posição do Brasil também pode refletir um temor de intervenções externas em assuntos delicados internamente, como os altos índices de violência.
Em declaração neste mês na ONU, a Rússia disse que se o 16º objetivo proposto for é aprovada “uma porta se abrirá para a interferência nos assuntos internos dos Estados”.
‘Risco alto’:
As negociações seguem em andamento em grupos de trabalho formados por alguns países. Em setembro, uma proposta será apresentada na Assembleia Geral da ONU. As discussões sobre quais serão os ODS e como sua implementação será feita e financiada devem estar concluídas um ano depois, para a assembleia de 2015.
Betsy Apple, da Open Society Foundations, vê um risco alto de que o objetivo de governança, paz e justiça seja eliminado. “O Brasil é muito influente nesse processo e por isso muitos países o acompanham”.
“Se o Brasil não apoiar esse objetivo por causa de uma agenda política de curto prazo, pode acabar eliminando-o, pois outros países importantes são de fato contra [esses princípios], como Rússia, China e Índia. Isso coloca Brasil em uma posição muito poderosa”, afirma o consultor jurídico da Article 19, Dave Banisar.