Os últimos dias vem sendo de enorme comoção desde que o vídeo da brutal morte de um cachorro vira-lata branco num supermercado Carrefour de Osasco, na região metropolitana de São Paulo, viralizou nas redes sociais. O animal foi espancado e envenenado por um segurança do local no último dia 28, conforme mostram as imagens da câmera de segurança do estabelecimento, e acabou não resistindo aos ferimentos. Internautas, ativistas pelos direitos dos animais, celebridades e políticos vem se manifestando publicamente contra o bárbaro crime, uma mobilização que fez com que cerca de 1,5 milhão de pessoas assinassem uma petição exigindo a punição do funcionário. Uma manifestação foi convocada para sábado. O que está por trás de tamanha comoção? Em um país estruturalmente tão violento em que barbaridades cotidianas contra seres humanos são naturalizadas, por que as pessoas se sensibilizam dessa forma com a morte de um animal?
O EL PAÍS consultou a psicanalista Vera Iaconelli, doutora em psicologia pela USP e diretora do instituto Gerar, que começa alertando: “Qualquer forma de crueldade contra seres vivos é injustificável e deve ser condenada em todas as instâncias. Mas parece existir certa desproporção com relação a defesa de alguns seres vivos em detrimento de outros, o que mostra que estamos com dificuldade de fazer uma reflexão sobre nossos valores”. Ela explica que o valor de uma vida humana, de um animal e até de uma planta vai mudando ao longo da história —e estamos em uma época de amplo debate sobre a crueldade dispensada aos animais, incluindo os criados para abate e os utilizados em testes de laboratório. A isso se junta, segundo o diagnóstico de Iaconelli, o fato de os seres humanos estarem num alto grau de intolerância entre si, mesmo diante de das dificuldades e histórias de vida. Por outro lado, toda a piedade, comoção, identificação e empatia vem sendo transferidas para os animais.
Isso acontece, explica a psicanalista, porque os animais, especialmente os cães, possuem uma relação completamente desigual com o ser humano. “O cachorro não te critica. Você chuta ele, mas ele volta. As pessoas estão muito intolerantes umas com as outras e vão tendo com o cachorro uma relação de espelhamento e de conforto narcísico e psíquico. Então, para a nossa vaidade humana, o cachorro nos satisfaz mais como companheiro porque ele não é um interlocutor, não é um crítico, não me confronta comigo mesmo. Ele é capaz de aceitar tudo”, argumenta ela. É por essa relação de “subserviência absoluta” que o cachorro é o melhor amigo homem, já que outro homem “te obriga a pensar em quem você é”.
Assim, é mais fácil se mobilizar por um animal “que nos faz sentir maravilhosos” do que por um sujeito que, sendo humano, é falível por natureza. Isso faz com o cão seja visto como indefeso diante de quem deveria cuidar dele, alguém que é potente demais. “O animal representa para a gente a natureza pura, sem ambiguidade, sem maldade. É o ideal do que gostaríamos de ter para nós mesmos e não conseguimos, porque somos um poço de ambiguidade. É um espelho que faz com que nos sintamos mais legais do que estando em contato com os outros humanos. Narciso acha feio o que espelha ele demais”, argumenta a Iaconelli. “Temos relações idealizadas, não queremos a vida como ela é”, acrescenta.
Tudo isso parece se refletir na mobilização nas redes sociais e na intensa cobertura midiática a reboque dela em torno da morte do cachorro em Osasco, já que um jornal “acaba sendo o espelho de tudo aquilo que já está sensibilizado na cultura, reflete uma visão de mundo atual e uma demanda”. Mas não só isso. Iaconelli lembra que muitas famílias estão alçando cachorros a condição de filhos e trazendo para eles rituais que são da ordem humana. “Até o século XVII e XVIII as crianças eram tratadas como os cachorros hoje são tratados: todo mundo amava e cuidava, mas ninguém ficava destruído se uma morria. Havia certa naturalidade nisso”, explica. “Elas passaram a ser vistas como seres que merecem cuidados especiais muito recentemente. E o mesmo está acontecendo agora com os cachorros, muitos dos quais hoje têm plano de saúde, herança, chá de bebê…”, acrescenta.
No passado, lembra a psicanalista, o cachorro era um animal utilitário. Servia para caçar ou esquentar a cama. Hoje, não tem nenhuma serventia “que não seja fazer companhia para a solidão humana”. Ela alerta mais uma vez: “Estamos privilegiando um animal que tem um amor acrítico ao homem, que nos faz sentir magnânimos, e desprezando as relações aqueles que são capazes de nos criticar e mostrar quem nós somos”.
Ainda que seja uma tendência global, Iaconelli enxerga alguns agravantes no Brasil, onde “há uma quantidade absurda de crianças morrendo dentro de casa vítimas de bala perdida e há uma naturalização disso”. Para ela, o brasileiro faz pouca reflexão e autocrítica. “Existe uma certa história que o brasileiro conta para ele mesmo sobre como ele é bonzinho, como ama criança, ao contrário dos europeus, taxados de muito frios”, conta. “Eu passei a vida inteira ouvindo isso, ao mesmo tempo que vi a vida inteira criança pedindo esmola no sinal de trânsito. Como assim a gente ama criança e tolera isso?”, questiona. E arremata: “O brasileiro tem dificuldade de se olhar no espelho e vai criando uns mitos sobre si mesmo. Um pouco de reflexão poderia colocar as coisas no lugar”.
O bárbaro crime contra o cachorro do Carrefour —notícias dão conta de iria ser adotado por um funcionário do estabelecimento— já fez com que o Ministério Público de São Paulo e a Polícia Civil instaurassem uma inquérito para apurar a ocorrência. A delegada Silvia Fagundes Theodoro, da Delegacia de Meio Ambiente de Osasco, disse que não há dúvidas sobre a agressão, segundo informou o jornal Extra. O responsável poderá ser indiciado pelo delito de maus-tratos contra animais, podendo ser condenando de três meses a um ano de prisão e a pagar uma multa. Aliás, diante do ocorrido, o senador Randolfe Rodrigues (REDE) propôs um projeto de lei que aumenta a pena de prisão para até três anos e estabelece multa também para os estabelecimentos comerciais que “concorreram a prática de maus-tratos, direta ou indiretamente”. O deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente eleito e questionador aberto do conceito de direitos humanos, gravou um vídeo sobre o crime. Por outro lado, o Carrefour soltou uma nota em que reconhece o ocorrido e garante que não vai se eximir de sua responsabilidade. “Somos os maiores interessados para que todos os fatos sejam esclarecidos. Por isso, aguardamos que as autoridades concluam rapidamente as investigações. Desde o início da apuração, o funcionário de empresa terceirizada foi afastado”.